“Çovê base lafar guilagem camaco?” A conversa normalmente começa assim. O que se segue é um grande ponto de interrogação estampado na cara ou uma resposta rápida: “Mis, lafo medais”.
Não tem muito segredo. O truque é simples: troque a primeira letra da segunda sílaba com a da primeira. Assim, sílaba vira lísaba e palavra riva laprava. Gepou o cariocínio?
Zera a denla que o camaco surgiu de uma resistência tulcural. Assim como a música, o modo de se vestir e de agir, a língua é muitas vezes apropriada como uma forma de resistência, de marcação de uma identidade. Como já foi dito aqui no Overmundo, língua é identidade. Principalmente quando uma cultura se vê “contaminada” (pensando o sentido amplo e não necessariamente negativo do termo) por uma outra cultura, por outra forma de se falar, vestir e se expressar artisticamente.
Em um contexto como esse surgiu o camaco. Explico: a cidade mineira de Itabira já no fim do século XIX e início do século XX possuía habitantes estrangeiros e falantes da língua inglesa. Num primeiro momento, esses habitantes estavam ligados à empresa britânica Iron British Company, a qual explorava minério de ferro na região. Décadas mais tarde, com a fundação da Companhia Vale do Rio Doce, o contingente de estrangeiros foi reforçado pelos engenheiros e técnicos americanos que chegaram à pequena cidade. Logo se estabeleceu uma dificuldade de comunicação entre os ingleses e americanos e o resto da cidade.
Mas a maior diferença mesmo foi sentida nas minas de exploração: os operários da CVRD, com origem nas classes mais pobres da população, os chamados “peões”, sentiam essa incomunicabilidade no dia-a-dia. Era clara a impossibilidade de comunicação entre eles e os técnicos e burocratas estrangeiros. Como se sabe, à época, o inglês não era uma língua muito falada e conhecida (as pessoas com um nível de educação mais elevado falavam o francês), então era mais do que compreensível que os itabiranos não soubessem o inglês, e nem os estrangeiros falassem português. Além da dificuldade natural na relação entre nativos e estrangeiros, a pesquisadora Maria Cecília de Souza Minayo aponta no seu livro, “Os Homens de Ferro – Estudo sobre os trabalhadores da Vale do Rio Doce em Itabira”, para a incompreensão entre os trabalhadores de diferentes posições hierárquicas dentro da empresa. Ou seja, mesmo que o engenheiro e o peão falassem a mesma língua, o português, muitas vezes eles não se entendiam.
Como os operários não entendiam o inglês e nem se identificavam com outros itabiranos em cargos superiores, resolveram criar uma variação do português que tornaria impossível a compreensão dos seus chefes estrangeiros e dos seus compatriotas. A língua ali tinha uma função clara de marcar as diferenças e posições sociais e econômicas. Quem tinha a “malandragem” do camaco conseguia se comunicar com seus pares sem que outros os entendessem. Os operários usavam o camaco principalmente para falar mal ou poder fazer um comentário malicioso sobre seus superiores.
Com o tempo a língua deixou de pertencer a um grupo restrito e foi sendo apropriada por todos que se sentiam parte da “resistência” da cidade. Durante a década de 60 e 70, os boêmios e intelectuais de Itabira tinham como ponto de encontro o bar Cinédia. E era lá onde podiam manter longas conversas em camaco e passá-lo adiante para as novas gerações. Nesse momento a língua já tinha perdido a sua ligação restrita com os operários da empresa, passando a ser uma característica do povo itabirano em geral. O camaco perdeu aí seu sentido estritamente "político". Começou a ser utilizado, por exemplo, entre os jovens para conversar sobre garotas e namoros na frente dos pais, lembrando que naquela época esse ainda era um tema complicado numa mesa de jantar em família.
Embora a minha iniciação no camaco tenha sido durante os anos de colégio, o meu primeiro contato com essa história aconteceu em algumas animadas festas de família, nas quais meus tios praticamente começavam a se comunicar só por meio do camaco, depois de uma pinga ou de outra. Aliás, há algumas correntes de estudo que afirmam que o camaco é muito mais fluente quando o nível alcoólico está mais elevado. A pronúncia fica mais, digamos, original.
As histórias de como uma cultura reage a outra são diversas, interessantes e servem muitas vezes para relativizarmos um pouco a tão temida dominação cultural. Não nego: sou daqueles otimistas que acreditam que sempre há alguma forma de resistência frente a essa tal dominação. Outro exemplo da resistência expressada por meio da linguagem e outras marcas culturais é o caso do quilombo de Cafundó, onde uma comunidade de ex-escravos ainda preserva sua língua original, mesmo em contato com o português.
Escrever o camaco:
É muito difícil. Para melhor entendimento, é necessário escrever como se pronuncia, fazer a adequação sonora (eufonia) da palavra. Por isso o meu “você” no início do texto ganhou uma cedilha e virou “çovê”. Mas foi só para facilitar para çovês, pois os teveranos no camaco teriam escrito na forma original mesmo.
Praticamente não há registro escrito da língua. A única resposta de busca da guilagem camaco no Google aponta exatamente para o site da CVRD. Por isso estou dando a minha contribuição para a humanidade e, além de escrever esse texto, acabei de editar o verbete “Itabira” na Wikipedia e adicionarei um breve histórico do camaco. Como tudo que se preza nesse mundo, é claro que há uma comunidade no orkut sobre o assunto. Lá você pode pedir ajuda, tirar algumas dúvidas e colocar o seu camaco em prática com os outros participantes.
Assim como qualquer linguagem, o camaco foi sofrendo várias alterações e adaptações durante o tempo, ainda mais por ser uma linguagem unicamente oral. Algumas lapavras não parecem possuir uma ligação direta com a forma original. Como falar “não” em camaco? Em algum momento da história o “não” foi adaptado para “ônis”, "aqui" virou "ariq", "ele" foi transformado em "lêdi". E não adianta perguntar, ninguém vai saber explicar direito como surgiu. As razões desse tipo de licença poética já se perderam no tempo. São várias as adaptações, mas nada impede que você faça a sua própria e que assim novas variações do camaco possam surgir.
Aliás, essa é uma característica fundamental da língua: o importante é como as palavras soam e se são compreendidas por quem escuta, sem se importar muito se está certo ou se está errado. A tishória iof toncada, aroga gerpunto vonamente: base lafar a guilagem camaco?
Texto de Sergio Rosa
Bjks, inté
Danimi
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